Ao ouvir esta introdução Era uma vez..., podemos ser transportados para um mundo em que nossos desejos mais secretos poderão ser satisfeitos, somos conduzidos a um lugar onde existem seres com supostos poderes mágicos que podem interferir sobre a ação humana para o bem ou para o mal.
Mas não é só isso. Bruno Bettelheim, autor do livro A Psicanálise dos Contos de Fadas, declara que o conteúdo dessas histórias possui o condão capaz de desenvolver recursos interiores que possibilitam que nossas emoções, nossa imaginação e nossa inteligência tenham condições de se ajudarem e se enriquecerem mutuamente.
Para Chesterton, os contos de fadas não acorrentam o leitor no mundo fantasioso; depois que a história termina, o leitor é devolvido à realidade, e não da mesma maneira, é devolvido transformado, visto que a decisão ética que essas histórias apresentam está presente na nossa realidade, isto é, esses contos apresentam situações em que é possível diferenciar o que é certo do que é errado, o que é bem do que é mal, o que se deve ou não fazer, e as consequências de cada uma dessas situações. O escritor e filósofo acrescenta que os contos de fadas é a história do próprio ser humano.
O escritor J.R.R. Tolkien, autor da trilogia O Senhor dos Anéis, escreveu o ensaio Sobre Conto de Fadas, e nele aborda algumas características desse gênero literário e as suas contribuições importantes para a vida de crianças e adultos (ele considera esse gênero apropriado também para adultos).
Tolkien sugere que a narrativa fantástica pode desempenhar funções importantes para o desenvolvimento psicológico. Para ele, os contos de fadas fazem o resgate do nosso encantamento para as coisas simples que nos acontecem, promovem a recuperação da nossa qualidade de vida. Quando os personagens dessas histórias alcançam vitórias que pareciam impossíveis; quando, munidos de virtudes morais, são capazes de praticar atos heroicos; quando perseguem o bem, mesmo tendo que passar por grandes provações, tudo isso nos serve de inspiração para superar as dificuldades cotidianas, os momentos difíceis em que é necessário encontrar forças internas para superá-los. Tolkien acredita que o consolo dos contos de fadas é a alegria do final feliz, que nega a derrota final universal. Ele diz que a marca de um bom conto de fadas é proporcionar uma repentina “virada” na história que tem um poder penetrante em crianças e adultos, podendo até levá-los às lágrimas. Essa suprema alegria é o que chancela a qualidade dessa literatura.
Acreditando na importância desse recurso, nós trazemos para você um conto de fadas e algumas contribuições para orientar a leitura desse gênero literário.
A BRONCA DA NÉVOA
Disponível neste site, em Obras, na pasta Peças Teatrais
Público-alvo: Educação Infantil e Ensino Fundamental
A Bronca da Névoa é o conto de fadas criado por W. Armanelli, que é uma versão bem- humorada do clássico Branca de Neve e os Sete Anões. A história é apresentada em versos, com mudanças na forma de ser de alguns personagens, sem alterar a essência da narrativa. Vamos constatar isso na exploração dessa história, quiçá possa nos render bons frutos.
A história começa nos situando sobre o tempo e o espaço em que tudo aconteceu: Foi há muitos, muitos anos. Essa é uma forma característica de começar os contos de fadas que tem a intenção de dizer que o que vai ser narrado aconteceu em um tempo distante e, assim sendo, pode voltar a acontecer. Num país pra lá do lá – a expressão indica quão longe é esse lugar.
A seguir somos apresentados à Sinforosa, a rainha que Era linda, muito linda/ Linda, linda de morrer/ Mas tão ruim, tão má assim/ Inda está para nascer. Sinforosa é uma bruxa linda e má. De antemão, tomamos conhecimento de que vamos lidar com o mal. Saberemos que a beleza da rainha reside somente na sua aparência, não na sua forma de ser; suas atitudes e suas ações revelarão a sua feiura, a sua maldade.
Nessa versão da história, temos a personagem Lupicina, que apresenta características diferentes da irmã maldosa, Sinforosa. Apesar de ser meio distraída - Pé na terra não pousava – é alegre, tem o sonho de se casar, ser feliz e, possui mais um atributo: ser bondosa sempre quis. Esse sentimento fará com que ela combata o mal.
Na quinta estrofe, é apresentada a personagem principal – Enteada era a Bronca/ Menininha acanhada/ Não sabia que a rainha/ Era má e desalmada. Nos versos que se seguem, é possível constatar a beleza, a bondade, como também a ingenuidade da Bronca da Névoa.
E eis que surge o Espelho Mágico, o Espelhinho do Nereu, que, além de ser mágico, a tudo vê, e isso lhe confere maior poder. Ele tem um jeito meio debochado, mas isso não o impede de ser pronto e verdadeiro nas suas respostas.
O espelho (ah, o espelho!) aquele que é sempre consultado pelos vaidosos, e com a rainha Sinforosa isso não era diferente; ela fazia a sua consulta a questão de todo dia. Mas vale lembrar: chega um dia (ele sempre chega) em que vamos encontrar alguém que nos supera em alguma coisa. E foi justamente isso o que aconteceu com a maldosa rainha que se orgulhava de ser a mais bela – a bondosa e bela Bronca da Névoa conseguiu desbancá-la, embora essa não fosse a sua intenção.
Diante desta revelação (bombástica para Sinforosa), “É, rainha, deu areia.../ Eu lamento lhe informar/ Bronca hoje é a mais bela/ Já tomou o seu lugar...”, nossa história ganha outros contornos, outro ritmo, outra força, pois a maldade de Sinforosa alia-se à sua vaidade ferida. Grande perigo à vista! Temos então uma maldosa e invejosa rainha que usará todo o seu poder, toda a sua artimanha, para ter de volta o seu reinado de beleza que lhe é caro. E começa pôr em prática um plano macabro de extermínio daquela que é “responsável” pela sua grande perda.
Josué, o serviçal da rainha, bem depressa é chamado para trazer o carrasco Carrasquento, que, por sua vez, recebe a infeliz incumbência de matar a Bronca. Mas Carrasquento, ao perceber a inocência e bondade da mocinha Bronca, pondera: “Ora essa, que maçada!/ Já nem sei o que fazer./ O que caço é bicho fera/ Não sei crimes cometer!”. E, depois de refletir, decide descumprir a ordem da terrível rainha.
Temos aqui uma virada na nossa história - “Vai embora bem depressa/ Não te posso assassinar./ Vê se esconde lá bem longe/ Pra rainha não te achar...”. Mas a boa ação do carrasco não é completa: Bronca da Névoa é deixada sozinha na floresta, exposta a todos os perigos que nela existem. Mas a sorte ajuda os corajosos e ela encontra uma casinha, a dos sete anões, para se abrigar.
A cruel Sinforosa é enganada: recebe o coração de um cabrito e pensa que é o coração da enteada, pois ela havia ordenado que este lhe fosse entregue como prova do crime. E, ao consultar o Espelho Mágico, a verdade vem à tona: “Na floresta, mui distante,/ Lá na granja dos anões/ Viva está Bronca da Névoa/ Bem colhendo os seus melões...”.
Diante desse fracasso, a invejosa rainha conclui que é ela mesma quem deve resolver de vez a questão: matar a Bronca da Névoa. Assim pensa, assim faz: “Dinossauros! Terremotos!/ Só eu mesma posso agir/ De velhinha boazinha,/ Maçãzeira vou fingir...”.
E o que aconteceu? Pobre, pobre da Bronquinha!/ Nem de longe desconfiou/ E, da Bruxa, as maçãzinhas/ Com veneno, ela comprou./ Comprou e pagou./ Comeu e morreu./ Tão dura ficou/ Que nem se mexeu... Morreu? É o que parece, no entanto, nem tudo que parece ser verdade, verdadeiro é.
A história aqui termina? Não, afinal esse é um conto de fadas que tem o consolo do final feliz.
Há choro, há velas, porque os sete anões acreditam que Bronca da Névoa está morta.
Lupicina chega com o seu jeito alegre e jovial, trazendo alguém que dará uma grande virada nessa história – “Corte o choro! Sopra as velas!/ Tudo aqui vai se alegrar/ Tenho a chave do segredo/ Pra vocês eu vou contar...” E ela anuncia o Bernadão, um príncipe de amargar, míope, mas que tem um abraço poderoso, capaz de levantar a desfalecida (não a falecida) Bronca.
E assim, o príncipe Bernadão acorda a Bronca da Névoa e conquista o coração dessa bela moça.
Que surpresa e alegria
Nossa Bronca sarou.
Bernadão mesmo biruta
A princesa conquistou.
Toca festa, toca o baile
Ninguém pare de cantar
A Bronquinha, que é a mais bela
Com seu noivo vai casar...
A Bronca da Névoa acrescenta alguns elementos interessantes ao tradicional Branca de Neve e os Sete Anões. Vamos identificá-los e analisá-los.
A história é apresentada em versos – há ritmo, há musicalidade nas rimas, há expressões inusitadas (Dinossauros! Terremotos!) que fogem do contexto, e, por isso mesmo, ganham força e tornam a cena engraçada, rica e ficam retidas na nossa memória.
Todo o conto é narrado com doses sublimes de humor, o que o torna mais poderoso, mais fácil de ser assimilado. Ser capaz de provocar no outro e em si mesmo risos, tem grande valor.
A inclusão da personagem Lupicina como irmã da rainha, favorece o entendimento de que é possível ser bondosa, mesmo tendo por perto alguém tão cruel quanto Sinforosa. Assim, é possível concluir que o bem pode florescer apesar de circunstâncias adversas.
Bronca da Névoa tem um bom coração, mas não tem uma inteligência brilhante. Ou seria melhor: não tem uma inteligência brilhante, mas tem um bom coração? Existe valor na inteligência se não há bondade? O desenvolvimento da inteligência precisa estar alinhado ao desenvolvimento de virtudes. De nada vale a inteligência, se ela não for usada para a promoção do bem.
Também o Príncipe Bernadão é apresentado com algumas limitações. Apesar da miopia, tem os seus poderes, tem os seus encantos e conquista o coração de Bronca da Névoa com esses atributos.
E, diante do que foi exposto, só nos resta desejar que os contos de fadas tenha o seu lugar garantido nas boas práticas de leitura e, dessa forma, ter comprovado o seu poder de atuação no imaginário, no desenvolvimento do caráter, na formação de leitores capazes de compreender e utilizar a leitura como forma de se aprimorar.
E entrou por uma perna de pato,
E saiu por uma perna de pinto.
Mandou El-Rei, Meu Senhor,
Que me contasse cinco.
Estamos combinados então: contamos mais no próximo encontro.
Ah, ainda em tempo: importante lembrar que a essa história apresenta uma estrutura que possibilita a apresentação em forma de teatro. Com alunos a partir do 4º ano do Ensino Fundamental, o trabalho é possível e com resultados exitosos. Com uma das minhas turmas do Armanelli, fizemos a apresentação dessa história e comprovamos quão divertido e rico pode ser essa vivência. Vale conferir!
Nádia de Azevedo Porto
Consultoria e Assessoria Pedagógica
Desenvolvimento de práticas que oportunizam
melhores resultados pedagógicos, baseadas em evidências científicas.