Mas antes de apresentar o Salomão, falaremos sobre vocação, o que Salomão parece não ter.
A palavra vocação tem a sua origem no verbo latino voco, vocare, cujo significado é “chamar”. Isso quer dizer que quem faz algo por vocação tem o sentimento de que é chamado a isso pela voz de uma entidade superior, seja Deus ou a humanidade, seja uma força maior capaz de dar sentido à vida.
Ter condições de responder de forma adequada a esse chamado requer atenção e disposição para buscar constantemente se aproximar do que existe de melhor e de mais alto em nós. Isso mesmo, fazer o que estamos vocacionados a fazê-lo é concretizar o que está inscrito em nossos instintos, em nossas capacidades, em não sei que impulso interior que a razão controla, como bem definiu o filósofo Sertillanges.
Entretanto, pode acontecer de você ter consciência desse chamado, mas a realidade se impõe de tal forma que impede você de responder a ele. Ou seja, você é obrigado a trabalhar em algo que não é exatamente a sua vocação. Sendo assim, é preciso jogar com estas duas situações: o que você de fato deseja, e o que a realidade lhe impõe, que não representa o que você deseja.
Se essa for a sua realidade, você precisa aceitá-la. Você pode perguntar: “Mas o que faço com a minha vocação?” Calma! Chegaremos lá. Aceitar a realidade com plenitude, sem reclamar, sem colocar nenhuma objeção, é um importante exercício, porque a realidade é a sede da verdade e, se você não aceita a realidade, a sua mente não aceita pensar naquilo que lhe acontece. Dizendo em outras palavras, ao não aceitar o que lhe acontece e, ao colocar o seu desejo acima da realidade, você se desliga, você se descola do real, escapa da verdade do seu momento de vida. Qual o perigo dessa prática? Você jamais será capaz de responder adequadamente ao chamado, jamais conseguirá realizar as suas tendências mais profundas. É o ônus que se paga quando se perde a conexão com o que realmente existe no seu íntimo, aquilo que é o melhor de você, as suas aptidões mais legítimas.
Por outro lado, há um aspecto que merece a sua atenção: mesmo que você esteja fazendo o que você considera não ser a sua vocação, mas, se você se dispuser a observar atentamente, perceberá que existe nesta realidade algo que pode estar intimamente ligado àquilo que é o seu destino, àquilo que conduzirá você a alcançar a plenitude do seu ser, àquilo a que você é vocacionado, que é chamado a realizar, porque tudo o que nos acontece tem uma razão de ser, nada deve ser desconsiderado.
São Josemaria Escrivá, conhecido como o santo da vida corrente, acreditava que era possível encontrar Deus nas atividades cotidianas. E sobre a vocação, ele disse: A vocação leva-nos – sem disso nos apercebermos – a tomar uma posição na vida que manteremos com entusiasmo e alegria, cheios de esperança até ao próprio momento da morte. É um fenômeno que comunica um sentido de missão ao trabalho, que enobrece e dá valor à nossa existência. A partir dessas duas abordagens de São Josemaria, podemos concluir: quando realizamos a mais insignificante tarefa com desvelo, com atenção, podemos entrar em contato com as profundezas de nosso ser e, assim, podemos conhecer a nossa substância, e caminhar na direção da realização plena de nós mesmos.
E vale reforçar: não podemos submeter a vocação somente ao critério do prazer e do dinheiro. Não quero dizer com isso que o trabalho vocacionado não deva ser prazeroso, ou que ele não será capaz de nos proporcionar ganhos financeiros. De forma nenhuma. Pelo contrário, se ele estiver diretamente conectado ao nosso impulso espontâneo, conectado aos nossos dons, às nossas virtudes, o prazer pode revelar nossas vocações, e poderá nos proporcionar ganhos muito além do financeiro.
E não se esqueça - nenhuma situação de vida oferece só prazer, uma vez que o viver não comporta somente o que é do nosso gosto. Faz parte da vida a alegria e a tristeza, o êxito e o fracasso, o sofrimento e o bem-estar... No completo entendimento desse movimento em que os opostos se entrecruzam e dialogam, é que seremos capazes de perceber a grandiosidade do viver. Sendo assim, o esforço, a dedicação e a atenção são exercícios naturais e indispensáveis na nossa vida cotidiana.
E mais: o trabalho vocacionado é capaz de imunizar você a determinados sofrimentos, os quais você é capaz de suportar mais do que as outras pessoas. Para quem faz o que faz, por vocação, todo sofrimento fortalece a personalidade e é visto como algo positivo.
Isso posto, vamos à peça teatral - Salomão, o palhaço sem vocação. Desejamos que esse texto cômico de Wellington Armanelli, que muito agradou às crianças do Armanelli, possa, além de divertir, também inspirar você a obedecer à vocação, essa força vital, capaz de nos conduzir a uma vida com sentido.
Na Escola de Palhaços, está Salomão, um candidato muito agitado.
Salomão – Pronto, professor... aqui estou para a minha primeira lição de hoje... A lição de “palhaçologia avançada”...
Professor – Mas você aqui de novo?! Já não disse que você não tem vocação? Palhaço, Salomão, você nunca será...
S – Bué... bué... (chorando) Ó que desgraço! Eu quero ser palhaço... Ó que desgraço!
P – Desgraço não, Salomão! A palavra é desgraça.
S – Uai! E como a gente pode rimar palhaço com desgraça? É claro que tem de ser desgraço. Aliás, não tem importância, pois ele deve ser marido da desgraça.
P – Marido da desgraça?! Meu Deus, quanta burrice! A desgraça não tem marido.
S _ Coitadaça da desgraça!... tão velha, e ainda não tem marido! Ah! Já morei... ela é solteirona...
P _ Que solteirona que nada, Salomão! Ficou doidão?
S _ Já sei, já sei... Já SE – EE – II... Ela é viúva... porque o desgraço morreu... né?
P – Paciência! Ó céus, muita paciência, é o que eu preciso para aguentar tamanha ignorância... Onde já se viu falar que o desgraço morreu...
S – É sim-pi-les... mais do que sim-pilis... se nasceu e não morreu... só pode estar vivo...
P – Salomão! Salomão! Você me arrasa o coração.
S – Professor! Você está fazendo versos? Que lindo! (Imitando) Salomão, Salomão! Você me arrasa o coração! Lá no portão do João, está o Bolão assentado no mamão... comendo um pedaço de pão... Está vendo? Eu também sou “poeta versador”.
P – Chega de bobagem, Salomão! Vamos à aula. Estou perdendo meu precioso tempo. Anda, diga logo, o que você sabe fazer?
S – Eu? Mas eu mesmo? Ora, de palhaço eu sei fazer TUDO. Eu danço... (dança) Eu pulo... (dá uns pulos desajeitados) Eu imito cachorro... (dá uns latidos) Eu versejo... Eu sou verseiro de nascença.
P – O quê? Você o quê?
S – Ora, eu faço versos... O senhor não viu? Quer que eu faça mais uns dez?
P – Não!
S – Mas eu também sei cantar... Quer ver? Ouça está linda canção: “Debaixo do guarda-sol do seu Rabelo, fui um dia passear”... *1
P – Que negócio é esse?! “Guarda-sol do seu Rabelo”? Quem inventou essa bobagem?
S – Não sei quem foi... mas lá no rádio, está tocando isso toda hora. É música do Betinho Cá... cujo apelido é Roberto Carlos.
P – Betinho Cá! Paciência, dona Jumência! Se não eu morro.
S – Por falar em morro, professor, o senhor conhece a cidade “Morro da Televisão”? Eu já turistei lá. *2
P – Turistou? Que é isso? Cidade “Morro da Televisão”... Nunca ouvi falar nessa tal cidade...
S – O senhor não sabe? Que horror! (Virando-se para a plateia) E depois falam que professor tem de ser sabidão. (Voltando-se para o professor) Eu expinico: é a capital do Ouro-gua-iê...
P – Francamente, Salomão... você não passa mesmo de um bobão... Todo mundo sabe que a capital do Uruguai é Montevideo. E veja bem é U, Uruguai.
S – Então? En-tão? Monte é morro?
P – É...
S – Televisão não tem vídeo?
P – Tem...
S – Então??!! Então? Então? Monte é morro... vídeo é televisão... logo, “Morro da Televisão”! fica muito mais legal do que Montevideo. É mais jovem... mais fank... é mais prafrentex...
P – Paciência, dona Jumência!!! PA-CI-ÊN-CIA.
S – Gostou, hein? Mas mudando de assunto, sabe de uma coisa, professor?
P – O que que é?
S – Eu sei fazer mais uma porção de coisa? Adivinha... Professorzito! Queridito! Tu és um amorzito! (Faz um gesto de querer abraçar o professor) Veja só o que eu sei fazer. (Vai mostrando uma série de “habilidades”, todas elas fracassadas)
1 – Ficar de pé em cima de uma lata (cai).
2 – Equilibrar um ovo (de papel) na ponta de um cabo de vassoura.
3 – Plantar bananeira em cima do travesseiro etc.
P – Chega, Salomão! Para palhaço, você não tem vocação. Você nunca vai trabalhar num circo.
S – Não?! Vai amanhã lá no circo japonês para você ver. Eu estarei lá... vendendo pipoca... Já comprei até carrinho. Uma cigana disse que eu ainda ia trabalhar num circo... e vou! Vou mesmo.
*1 – Se você quiser trabalhar essa peça com os seus alunos, você pode atualizá-la inserindo os versos de uma canção que tenha mais sentido no contexto da sua turma. Esse texto é da década de 1980, portanto, essa música do Roberto Carlos fazia sentido naquela época.
*2 – Se você achar que a sua turma não entenderá bem a citação do Uruguai e sua capital Montevideo, sinta-se à vontade para operar mudança adequada no trecho.
O que torna o texto engraçado é justamente a falta de vocação de Salomão e a sua insistência em querer ser palhaço. Isso nos ajuda a perceber a diferença entre ser insistente e ser persistente. Para responder ao chamado desse impulso misterioso que é a vocação, é preciso persistir, é preciso que você se esforce, que você se dedique a essa realização. Mas, se você não tem nenhum talento em uma determinada área e insiste em querer seguir um ofício que requer esse dom específico, e você quer porque quer simplesmente continuar insistindo, lamento dizer, mas possivelmente você estará fadado ao fracasso.
Portanto, fique atento à sua vocação, pois a maior parte do tempo você vai gastar trabalhando. E se você não está realizado no seu trabalho, não conseguirá se realizar em parte alguma. Vale mirar-se no exemplo de Salomão, esse palhaço sem vocação, mas que nos apresentou uma grande lição. (Opa! rimei sem querer. Será esse um efeito “salomônico”?!)
Nádia de Azevedo Porto
Consultoria e Assessoria Pedagógica
Desenvolvimento de práticas que oportunizam melhores resultados pedagógicos, baseadas em evidências científicas.